terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Morte

Quando acordei e disseste
                - Estou a morrer
Já um pé se encontrava desaparecido, oculto ou apenas transparente, não transparente, talvez mordido pela morte. Do pé extinto nascia uma transparência tão lúcida e competente que iniciava o desaparecimento do teu corpo em volta do tornozelo, a sumi-lo, a calá-lo, a adormecê-lo até que tu
                - Estou a morrer
Enquanto o tornozelo deixava de ser tornozelo e era já uma dobra de lençol, uma covinha do peso do teu pé. Tão leve o teu pé. Tão fino e bem executado. E quando no sofá te deitavas eras toda pés, uns pezinhos encolhidos de frio e o resto uma nuvem mulher. Os dedos a darem de si queixosos
                - Temos frio
Talvez não fosse frio, fosse medo
                - Estamos a morrer
Agarravas-te a mim na cama que tinha servido de vida aos dois, a procuras-me com mãos cegas, a acariciares-me a cara como se a proximidade para com a morte te tornasse mais humana. Não humana. Antes um estado de pura maldade aguçado pelo instinto animal da morte que te consumia.
Da tua anca pendiam dois tocos, as pernas ausentes, mortificadas. O efeito da transparência cada vez mais evidente. A morte a dizer-me
                - Levo-a
Tu beijavas-me enquanto desaparecias, já nem dedos tinhas para afectos mas ainda me tentavas seduzir, a convencer o meu amor por ti, a comprá-lo. A tua boca ainda existia, aberta em alinhamentos atraentes, a pedir-me
                - Ama-me
Desaparecias na morte por nunca teres sido amada. Só um corpo amado pode ser visto para poder ser lembrado. E os teus beijos a nascerem de ti, cada vez mais intensos, mais apetecíveis. Senti paixão. Não por ti, não pelo teu corpo que era agora um busto de um seio só. Senti paixão pela morte, por esse estado de esquecimento físico. Desejo por ser esquecido. Por te esquecer.
A tua face a diluir quando uma lágrima escorreu. Não tive tempo de ter-te pena porque já te tinha omitido.