quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Solidão


Abro a janela deste quartito no terceiro andar, ainda ali permanece a solidão, muito quieta e solene, sentada no banco da praça (no banco junto à fonte, não no outro). Também para que lhe serviria mexer-se muito se é tão bom vê-la ali quieta, os olhos duas bugalhas húmidas, muito fitos em mim, a comoverem-me. Inquieta-me a sua persistência em não me abandonar, a sua ousadia eterna. Nunca tive ninguém que pernoitasse à minha janela. Quanto tempo esperará até me conquistar?
Entra a primeira claridade matinal (serão quê, nove horas?), faz-se sentir o ar renovado pelo descanso que a noite às vezes traz, e a solidão no banco a acenar-me. A Zulmira já vai tempo que arrasta sacos na praça, os bifes, o pão, os legumes. Sempre me transcendeu o ódio que os velhos ganham aos sacos plásticos: o mexer, o restolho do plástico, o dobrá-los em triângulos na gaveta, o trauma da reutilização. Produzissem sacos plásticos mudos, que apertados não exibissem nenhum ruído, e desfalecia a Zulmira de tédio por lhe ficar em falta a singularidade da vida, o seu labor, o objeto da sua dedicação, dissipava-se a busca de algo, a meta. Em suma, o futuro.
Penso e repenso se convido a solidão a entrar. Estou demasiado desajeitado para receber visitas em casa. Casa que não é casa.

    - É um quartito e uns asseios com vista rio - disse-me o senhorio na altura.

O cabelo está-me muito oleoso, o roupão assenta triste no corpo que tenho, as pantufas rotas nos calcanhares, o quarto que cheira a livros e a pó. Decido-me a convidá-la mesmo assim, arriscando mostrar a mais pura gema do que sou.
Se desço agora, a Zulmira ouvindo os meus passos, destranca o ferrolho no segundo andar e espreita:

    - O menino quer cá vir almoçar hoje? Onde come um, comem dois.

Prefiro não descer. Por que esperará a solidão por mim e não pela Zulmira? Serei eu mais só que uma velha envolta em plásticos coloridos? Vou à janela e aceno, para que venha, que entre. Ela sorri-me delicada. Levanta-se, arrasta a mala até à porta do prédio, deixo de a ver da janela, ouve-se o batente da porta a fechar, e agora só passos. Há passos que nos marcam. Na memória às vezes restam só passos de alguém que passou no tempo e no sentimento. Sobe-me uns tremores no ventre, sinto-me tenso e ansioso. Ainda saberei entregar-me a uma mulher?


Abro a porta a correr e ela já parada a sorrir. Puxo-a para dentro hesitante e ela tão calma, tão bela. Há um beijo que aparece entre nós que nos leva até à cama.
A solidão tem amor e fidelidade de cão. Parece-me tão impossível alguém amar assim, sabendo que amanhã podemos já não querer a solidão de ontem.