- Fausto, ó Fausto
Atormentavam-me e eu cheio de sensações curiosas tinha de as espreitar. Descia as escadinhas para a cave, abria a porta ripada de madeira que cortava tiras de escuridão em fatias muito magras, acendia a luz pálida de capela, seguia até ao baú forrado a pele e enfiava uma mão dentro a procurá-las
- Fausto, ó Fausto
E eu procurava-as só com uma mão, a outra segurava o tampo do baú com os três pastorinhos de fátima a olharem-me de joelhos com olhinhos esquecidos de caco. Encontrava uma, depois a outra. Às vezes já vestidas, outras despidas pela última vez que lá estivera. Sempre que tal acontecia, acredite, vestia-as com topes decotados e saias pelo meio das pernas. Tão perfeitas, tão reais. Só vestidas me pareciam reais. Os joelhinhos magistrais, juntos e irmãos a pedirem-me que os beijasse. Os cabelos afirmavam-se brilhantes, as mãos eram muito iguais às suas. Mas não tenha medo, apenas gostava de lhes subir as saias, primeiro imaginava e só a seguir as subia, para ser mais demorado, mais real.
- Fausto, ó Fausto - chamava a minha mãe
Estou na sala, mãe. Estou a ver o Justiceiro. E enquanto ela descia à cozinha descascar batatas para o almoço, eu mudava de canal, e via os inocentes desfiles de moda, ansiando que a próxima surgi-se do biombo envolta em rendas. E pode acreditar, a novidade era do tamanho do mundo. Começava a crescer-me uma dor não sei onde, em forma de não sei como, e arrastava-me até à televisão para lhes dar beijinhos nas maminhas. Como incomodava o formigueiro eléctrico presente na vidraça do televisor. Como quebrava o real.
- Fausto, ó Fausto
Eram elas a chamarem-me. Não acredita? Eu cedia involuntariamente condenado, descia para a cave e ia tocar as barbies da minha irmã. Só esperava que estivessem vestidas. Tão perfeitas
- Fausto, ó Fausto
Naquele tempo tão reais. Pode amar-me?