quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Colóquio

E se quiser, se lhe servir na compreensão de si mesmo, explico-lhe assim por troca de um cigarro outro, todo o conceito da sorte. Veja a sorte a que se dispõe amigo, vendo-lhe por um cigarro todo um projecto de ideias científicas baseadas em estudos da vida. Um cigarrinho amigo. Muito agradecido. Lume tenho. Portanto, assim em tonalidades muito brutas, a sorte é quando os acontecimentos que não controlamos nos favorecem a vontade. Se desejar passo-lhe um certificado a comprovar a sua compreensão pela matéria dada. Sabe que a compreensão humana é um motor que cada um constrói ao seu gosto, e que depois de formado não atinge mais além do que aquilo que foi preparado. Deve aperceber-se de tudo isto pelo diálogo, que é um processo rudimentar. Sendo que maioria dos motores de compreensão humana são construídos sobre a palavra.
Se me permite, vou-me deitando, pode ficar a aprender-me, deixe é cair um cigarrinho de vez em quando. Tudo na rua se paga amigo. Há gente maluca que faz colóquios sobre estas ideias, impinge-as por preços doidos. Modesto como sou, troco-as por necessidades pontuais. Também tudo o que digo hoje já não o penso amanhã. Mudo de opinião frequentemente. Não me chame vendido, a opinião variável é o reflexo da evolução. Repare que quando acabar este cigarro terei outra opinião sobre si se me der outro.
Reparei agora que não caiu nenhum cigarro. Se calhar esqueceu-se. Não seja agarradinho amigo. Se eu lhe morro ainda paga a um desses videntes do metro para lhe adivinhar a sorte e os males de amor. Olhe que o amor é o assunto não científico que vende mais. Sobre concelhos de amor só lhe posso dar um. No amor é-se fodido. Para se foder não se pode amar. Só assim terá prazer. O prazer acaba quando o orgasmo começa, a partir daí fodeu-se o Zé da Costa. Não interessa se tenho razão. Nem quero discutir isso agora. Chegado a este ponto, a única coisa que mais activa tenho é o cérebro. Tirando os dedos das mãos que tremem por vontades próprias. Ser-se velho é um estádio muito complexo mas que nos oferece uma visão muito peculiar do absurdo do amor. A velhice é o topo ou a decadência. Gostava de saber que sorte nos torna numa ou noutra. Olhe um cigarrinho para acalmar amigo. Muito gentil. O lume sempre tenho.
Mas amanhã se cá vier, posso trocar-lhe pensamentos políticos. Se não for pedir muito, puxe-me esse papelão mesmo por cima da cabeça. Exacto. Só para fechar a luz. Vou ver se sonho. Quer trocar um cigarro por um sonho. É nos sonhos que somos todos iguais.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Apetece-me Ela

Apetece-me ela. E quero apetecê-la num todo racional, apetecê-la em entendimento, pensá-la, ou apetecê-la só. Ou então só abrasar desejos esquecidos. Os olhinhos precipitados em mim e se os noto, logo olhinhos fugazes e perdidos de mim a procurar a origem de um ruído. De um som. Olhinhos que perguntam se não fui capaz de ter ouvido o que quer que seja, um sopro sequer, ali para os lados de baixo. Eu todo pedra. Eu todo pedra e três ripas de madeira para me fazer confundir nos planos, dar um estilo de ausência. Poder dizer

- Não sou eu, não estou aqui, sou pedra e cal e três ripinhas de madeira misturadas nos planos

Interessei-me pelo ruído para me interessar por ti. Fingi entendê-lo, desmultiplicá-lo numa nota só, expliquei-to sem explicar nada, expliquei-me antes a mim enquanto justificava o murmurinho. Apetece-me explicar-me a ti. O murmurinho lá em baixo

- Explica-te, explica-te

Eu a interessar-me nos efeitos do papel queimado de um cigarro, a seguir o fumo, sem te procurar por timidez, ou a procurar-te num soluço na esperança de não reparares. O ruído sempre

- Explica-te, explica-te

E se reparo muito em ti sei que vou sonhar-te.

Tu a escovares os dentes com cuidados de papel, a tua boca desfeita num sorriso espumado. Eu a fintar móveis na sala só para me distrair de ti. A procurar conveniências. A ensaiar frases, a pedir ao ponteiro de um relógio não me afastes dela empurrando-me porta fora com pressas de tempo. Em torno de ti os objectos de beleza a desentenderem-se uns com os outros dentro de uma caixa, tu a escolheres o melhor objecto para estampar feições no rosto, ficares ainda mais

- Apetece-me ela duas vezes

Os objectos a pedirem leva-me a mim que sombreio, leva-me a mim que arrebito pestanas, eu a pedir-te leva-me a mim que não faço coisa nenhuma, leva-me só nos dias ímpares para que não te mace, leva-me por levar, leva-me por ter esta lentidão da fuga dos fracos.

Vejo-te no teu silêncio aveludado, sempre julguei impossível ser-se silêncio e ter-se tanta textura. Nessa forma de dar-se sem haver entrega. Os gestos a nascerem, quero dizer, o significado dos gestos a nascerem sem haver o gesto. O gesto é bruto, implica a mutação física dos membros, que são sempre ímpios da crença da alma. Tu num significado a dizeres-me algo que não sei entender, talvez seja

- Deixa-me

Tenho esperança que fosse o ponteiro ciumento a empurrar-me

- Sai daqui

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Balanço

O autocarro soluça todo ele com cabeças de passageiro a dizerem que sim ou que não conforme o balanço. Acontecem momentos de mútuo desacordo, uns diziam que sim e os outros desaprovavam que não, que o sentido do balanço é lateral, que assim é que deve ser. Óculos escuros inquisidores, inquisidores e arrogantes, sempre sentados, a arrogância viaja sempre sentada. O nariz de um óculo escuro aponta-me ofendido de eu tanto o olhar. O nariz quase me toca na ponta da testa e me pergunta

- O que foi?

Não. Não. Talvez não seja o que foi. Será antes

- Estás a olhar?

Eu mudo. Nem que sim nem que não. Só respondo se o autocarro balançar. O que pode demorar. Aquele nariz assim a perguntar traz-me memórias

- Estás a copiar ?

não, pensava eu. Sou António Fagundes senhora professora

- Estás a copiar António?

E duas mocas dadas pela professora com os nós dos dedos juntos, onde no caco da cabeça sentia o seu anel de casada. E o autocarro que sim. Que afinal estava a olhar.

- Estás a olhar António?

Sim estou. Eu não mais mudo. Duas velhas mastigam marmelada todo o caminho. E com os olhinhos de noitibó a procurarem motivos

- A menina tem melhores pernas, bem pode ir de pé.

A investirem na confusão alheia para enriquecer o dia, para justificar se quer o levantar cedo. Tão penoso é o dia quando nada de outrem há para o alimento da expressão da realidade. A realidade expressa-se de tantas maneiras quantas janelas tem o autocarro. E cada qual usa a janela que mais lhe convier. Eu uso uma janela com uma silhueta feminina do outro lado. No balanço do autocarro eu confesso à silhueta que sim, que se ele pedisse muito a papava. Hoje, amanha e sempre amém. Mas toda ela indiferente. Toda ela mulher. Certamente não me ouviu. E vou gritar mais alto quando uma velha escorraça um velho porta fora

- Seu velho porco e contente – grita.

O velho porta fora em corridas satisfeitas. O seu sorriso trouxe-me à memória o Hélder que na escola levantava com varas as saias das colegas por trás e sem darem por ele, fazia metro e meio de sonho acuecado. Na frente a rapariga, a segui-la a vara, logo atrás o esgar do Hélder e no final, todo um auditório masculino. A professora no alto da sua janela via toda a procissão apregoando promessas cá para baixo

- Eu estendo-te nu no espigão Hélder.

A velha ainda no autocarro.

- Seu ordinário e contente.

Ou se ninguém ouvisse, se ninguém no autocarro, se ela sozinha com ele, talvez já não seu ordinário, talvez só

- Mate-me a saudade de um beijo.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ensaio Mal Ensaiado Sobre os Efeitos do Álcool

O que tem para eu beber amigo? A cerveja não sei o que ela tem que me cai mal. Vinho também não posso beber que me deixa bêbado. Sabe que o vinho uma pessoa bebe um copo aqui com um amigo, outro ali com um amigo, mais outro acolá com um amigo e dá por si tem dois litros cá dentro. Sirva-me um uísque. Desse novo, o senhor sabe qual é.
E eu estou aqui mas não estou a ouvir o senhor, tá a compreender? Eu vou ficar aqui a falar sozinho. Porque eu gosto, percebe? E tudo o que eu disser agora é para mim:

[
A vida é triste, a vida é bela e temos sempre sempre de viver nela. Eu não sei falar, eu esqueci-me de falar francês.

- Jeécris ou tu m’écris?
]

Esta agora é para você. Existem pessoas. Muitas pessoas, poucas pessoas. Quantas menos melhor, tá compreender? Tá perceber o que eu digo? Existem os brasileiros. Os brasileiros são, como é que se diz? Os luso-portugueses. São luso-portugueses porque os brasileiros não existem, tá compreender? Percebe o que digo ou não? Eles não existem. Mas tenho razão ou não? Mas não tenho razão de nada. Porque gosto de toda a gente.
E agora falo sozinho outra vez. Só para mim:

[
Eu tenho capacidade de me fazer de manhoso. Eu faço dupla personalidade. E eu estou aqui e não estou a ouvir a conversa de ninguém. Falo sozinho e só. Não, não, não. Provavelmente é isso. E eu disse-lhe

- A senhora está aqui para ir para a passerela. Porque para a entrevista chumbou.

Sou especialista em avaliar corpos. Porque eu até gosto de andar de pavilhão em pavilhão e como sou especialista, avalio corpos.
]

Esta é para você. Eu sou aposentado da força aérea. Sabe que a força aérea anda sempre pelo ar.

- Estive em duas guerras. Guiné

[
Eu não sei falar, eu esqueci-me de falar francês.

- Peux-tu m’indiquer la direction?
]

Eu às vezes faço estas conversas sozinho e canto. É uma brincadeira. Eu tenho dias que ando com uma cadela, tá a compreender? Eu tenho muitos amigos. Amigo é aquele que me dá uma sapatada e me enfia num táxi para casa. Percebe o que digo?
E agora só para mim, muito alto só para mim. A rezar:

[
- Se você se mata eu mato-me consigo.

- Se você se mata eu mato-me consigo.
]

terça-feira, 22 de junho de 2010

Avô Abismo

Estendeu-me um olhar esverdeado e molhado que afirmava ser capaz de me conhecer. A boca aberta num rasgo preto onde nunca viveram dentes desde que me lembro. Pensei que me olhava, talvez me tenha olhado. Visto mesmo. Ou talvez apenas um lampejo de memória. Uma recordação. Uma nota solta de uma peça musical que não sabemos bem qual. E ficou ali, todo olhos, todo olhos e um rasgo preto na boca que não mexia, que não formava mais nada para além do abismo. Talvez não tivesse forças já para do abismo fazer sair um qualquer ruído. Ou teria guardado as forças todas na contenção da urina sempre fugidia que não poderia no momento

- Agonia - disse ele

Agonia num silvo. E os olhos fecharam-se cansados de ver, o abismo abriu-se um pouco mais e entravam e saíam colheres de papa ralada, ora para dentro, ora para fora do escuro imenso. Deixava-se a mastigar com as gengivas as papas eternas, sempre desconfiado no seu íntimo que uma espinha poderia aparecer solitária e abafá-lo.
Longe iam os tempos em que passeava no átrio da casa de um lado para o outro, enxotando um sortido de netos, varrendo ao fundo um grupo de tias. Os netos trava-os todos por Paulo e lançava

- Oh Paulo, Paulo? Foda-se. Quietos. Cachopada do caralho.

Que se ouvia duas vezes do eco que fazia. Já nessa altura a memória era pouca. Bem guardadas, só as memórias da eterna Maria Cândida. A primeira paixão do meu avô por entre folhas verdes de milho. Sempre que lembrado, sorria abafadamente com a mão à frente da testa, escondendo as faces rosadas, ainda a desejá-la.

- Cagai-lhe à porta e dizei que foi um cão - rejubilava ele.

E ria-se sofregamente uma tarde completa.

- Coitadinho - desprezava a minha avó

E o abismo sempre a mastigar à procura da espinha. A engolir muito demoradamente o último prazer da vida. As pernas em feridas do sono contínuo na cama de ferro. Sobrava-lhe a vida em sonhos se ainda pudesse lembrar-se de como fabricá-los. Desejei-lhe a morte num relance enquanto ele

- Agonia

E o abismo daquela forma aberto, virado para mim, era o início da morte.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Deixe-me ser pequenino

Deixe-me ser pequenino. Prometo-lhe não pedir biberões quentes a meio da noite ou papas de cerelaque mornas antes de deitar. Consinta que me deite no seu colo, dormir um sonho só. Queria ver se repetia um que gostei muito, onde passeava com a Marina num barco a remos e não havia margens, não havia rio, éramos só nós, o barco e os remos. Hoje as Marinas são grandes demais, perdem o encanto da inocência alegre. Acumulam demasiados defeitos.

E a luz um pouco acesa se faz favor. Não é pelo medo, é pelo ter que ser. Tudo em pequeno tem que ser. O penico deixe-o ficar por baixo da cama, não desse lado, deste, assim. Gosto de descer a meio da noite e enche-lo até cima, transbordá-lo se tiver vontade. Molhar um tapete e fugir para dentro dos lençóis e esperar que amanhã alguém limpe. Em pequeno pode-se esperar que alguém limpe. Alguém vem sempre limpar. E até lhe permito que me ralhe um pouquinho, diga um

- Anda lá que vais limpar

Para eu amuar um pouco e cobrir-me de lençóis a fazer buracos de lobo e a esconder-me com medo que o mesmo lobo espreite. Garanta que me deixa tirar um macaco do nariz e escolher o sítio onde largá-lo. É uma tarefa de estimulação esconder um macaco.

Nos parques conceda-me a liberdade suficiente de cair. Escorregar e cair. E se eu quiser abrir a boca deste cão aqui, porque quero, abro-a. Já vi na televisão abrirem bocas a leões. E quando me oferecerem alguma espécie de doce e eu o recusar, eu recuso sempre por capricho, tenha a bondade de o guardar no seu bolso que mais tarde eu procuro.

Liberte-me na rua com um tampo de uma panela e vai ver como eu ando de automóvel. Gosto muito de conduzir testos de panelas pelas ruas sem fim. E quando voltar, quero abrir a caixa de correio e esperar daquela coisinha fechada que não tenha só cartas, uma surpresa, alguma coisa. Espero um brinquedo.

Deixe-me ser pequenino antes que aquela luz ao fundo morra apagando-se.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Ourivesaria

O velho ourives retirava os óculos da cara, bafejava dois sopros assassinos em cada lente murmurando silêncios em cada sopro. Estendia os óculos à frente do nariz, com muita dificuldade visual verificava-lhes as poeiras e dedadas teimosas. Apertava e desapertava os maxilares como quem rumina uma digestão que sobrava.

- Não sei o que aconteceu – disse eu

Ele levou instintivamente os óculos à fralda da camisola, aperto-os entre o pano massajando as lentes.

- Hmm-hmmm – respondeu

Voltou a levar os óculos acima do nariz, teceu um ritual de inspecção minucioso e montou-os em cima do mesmo nariz enquanto fechava os olhos com medo de falhar. Continuei a falar e ele

- Hmm-hmmm – espontâneo.

Calei-me. Os relógios em sinfonia desorganizada cresciam sobre mim monstruosos, mesmo os mais pequenos berravam como judeus nas suas câmaras de vidro a servirem tempo às fatias. Aproximei-me do velho ourives, jurava tê-lo ouvido murmurar. Mas da boca dele apenas saiam silvos de saliva apertada entre dentes na ocasião em que volta a descer os óculos, verifica uma última poeira que só ele acredita ver, talvez escondida entre o aro e a lente, imagina os filhos que poderia lá criar se ali ficasse e o obstáculo à sua visão. Franzia a testa em busca dela, irritava-se e juntava a uma árvore genealógica imaginária todas as poeiras e seus descendentes ao longo dos tempos.

- Acha que me pode ajudar – perguntei

Na sua absorção de arqueólogo interrogava-se pela poeira, se não era poeira que fosse cisco ao menos, tanto melhor, mais luta daria.



O velho jornaleiro enfiou os olhinhos assustados na escuridão da ourivesaria. Apertava um relógio mais fino que uma casca de ovo entre as mãos como se fosse a notícia mais secreta que algum dia tivesse vendido. Fixou-me durante um instante e subitamente entrincheirou-se dentro do armário das amostras.

- Não sei o que aconteceu – pronunciou-se aterrado

Marrava contra a porta do armário, apontava tudo o que era relógios com expressões de guerra. Talvez copiadas de um qualquer jornal.

- Hmm-hmmm – desprezei eu.

Continuou a olhar para mim, a seguir os meus gestos, dispunha-se trémulo e abandonado como um órfão desdentado que esperava ouvir uma canção de embalar. Tagarelou algumas palavras e eu

- Hmm-hmmm – pacientemente.

Eram quatro horas, os relógios soltaram as alegres vozes ordenadamente, envolviam toda a ourivesaria num halo musical a lembrar paisagens campestres. Os que não cantavam por não lhe terem dado cordas para cantar, marcavam passo numa marcha solene, vigorosa. Militar. Quase artística. O velho jornaleiro derreava-se como um cão em volta do balcão dando pinotes aflito, farejando tudo quanto é sítio até enfiar a cabeça entre as minhas pernas. Muito perto estive de falar mas calei-me.

- Acha que me pode ajudar - perguntou

Fingi interessar-me pelos aros dos meus óculos, pela cor que nunca tiveram, imaginei nas lentes em vez de vidros mostradores a darem horas. Pensei-os diversas vezes na esperança de ser amanhã.



Um relógio

- Eu canto!

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Elas

Vestia uma, depois a outra. Escondido. Muito secretamente vestia uma, depois vestia a outra com roupas diferentes porque a segunda era igual à primeira. Nas profundezas da cave estavam as duas tão perfeitas, imóveis a pedir que lhes tocasse. Eu ouvi-as do meu quarto a segredarem pelas tubagens da parede até mim

- Fausto, ó Fausto

Atormentavam-me e eu cheio de sensações curiosas tinha de as espreitar. Descia as escadinhas para a cave, abria a porta ripada de madeira que cortava tiras de escuridão em fatias muito magras, acendia a luz pálida de capela, seguia até ao baú forrado a pele e enfiava uma mão dentro a procurá-las

- Fausto, ó Fausto

E eu procurava-as só com uma mão, a outra segurava o tampo do baú com os três pastorinhos de fátima a olharem-me de joelhos com olhinhos esquecidos de caco. Encontrava uma, depois a outra. Às vezes já vestidas, outras despidas pela última vez que lá estivera. Sempre que tal acontecia, acredite, vestia-as com topes decotados e saias pelo meio das pernas. Tão perfeitas, tão reais. Só vestidas me pareciam reais. Os joelhinhos magistrais, juntos e irmãos a pedirem-me que os beijasse. Os cabelos afirmavam-se brilhantes, as mãos eram muito iguais às suas. Mas não tenha medo, apenas gostava de lhes subir as saias, primeiro imaginava e só a seguir as subia, para ser mais demorado, mais real.

- Fausto, ó Fausto - chamava a minha mãe

Estou na sala, mãe. Estou a ver o Justiceiro. E enquanto ela descia à cozinha descascar batatas para o almoço, eu mudava de canal, e via os inocentes desfiles de moda, ansiando que a próxima surgi-se do biombo envolta em rendas. E pode acreditar, a novidade era do tamanho do mundo. Começava a crescer-me uma dor não sei onde, em forma de não sei como, e arrastava-me até à televisão para lhes dar beijinhos nas maminhas. Como incomodava o formigueiro eléctrico presente na vidraça do televisor. Como quebrava o real.

- Fausto, ó Fausto

Eram elas a chamarem-me. Não acredita? Eu cedia involuntariamente condenado, descia para a cave e ia tocar as barbies da minha irmã. Só esperava que estivessem vestidas. Tão perfeitas

- Fausto, ó Fausto

Naquele tempo tão reais. Pode amar-me?

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Segundas pela manhã

Às segundas pela manhã tenho uma especial atenção pelos costumes remelados da sociedade. Contemplo gravatas passantes cheias de pressa a dar a dar. Umas rebeldes ao vento, já outras presas por mãos sapudas ou abas de colete. Mas umas e outras conversam mal-dispostas sobre bola e pernas de mulher. Uma gravata ao fundo soluça a café. De esquinas diversas juntam-se também os sapatos de tacão: há-os elegantes na passada, os altivos, os que condenam o tempo com toc-toc ou os roliços com boquinhas torcidas. Falam de nada com carácter importante como se sentenciassem um pecado capital.

Duas velhas descem a rua com cabeleiras excitadas, trazem os rostos (conservados?) em gorduras, os bordos da boca aumentados até ao buço por batom encarnado ou rosa, daqui não vejo bem, para induzirem lábios carnudos e sedutores. Da boca de uma adivinho um travozinho a álcool.

E escondo-me num café matinal, onde o dono na penumbra fica a rir para dentro de um telefone à David Lynch. E contínua.

- Olé, espera aí que já vou – diz um velho de olhinhos fundos a admirar o par de velhas para além da vitrina, expressando vontades com palmadas na mesa.

Peço um café e o empregado muito mudo, fica a medir a distância entre ele e a máquina de café, calculando e exagerando o esforço. Torce o beiço desgostoso até perto da orelha e vai contrariado como um menino que satisfaz as vontades do pai.

- É pá, um gajo é fazê-las em quanto pode – sentenciou o dono e trocou o telefone de mão.

O empregado atirou-me o café para o balcão rudemente e com gestos mal articulados de tão pouca vontade. Lentamente fui acompanhando os diferente planos. Ao fundo do café, um casal de gatos iniciava-se na vida amorosa sobre uma cadeira

- Ih, ih, ih, ih – ouviu-se.

E nem soube se tinham sido dores de gata ou o escárnio do velho a contemplar a natureza.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Desvitalizar

Grande pratalhada trás o amigo. Tem assim apetite. Eu em tempos comia bem, comia isso e muito mais. Ultimamente aconteceram-me coisas pesadas que me retiram o prazer em comer. Como uma sopita, as côdeas de pão não as mastigo, faltam-me dentes. O médico brocou estes três deste lado e dois aqui em baixo, está a ver. Aqui assim. Não, deste lado, veja: esgadanhou-me todo. Também não preciso deles. Desde que a minha mulher foi parar ao hospital vai um mês, perdi o apetite. Sinto-me sozinho, sabe. Uma pessoa da minha idade apanhada desta maneira. Chamo a isto o tufão da vida, compreende. Vem assim de repente leva-nos mulher, companhia, alegria e nem a merda dos dentes me deixa na boca. Eles já não valiam nenhum então para que mos tirou.

- Temos que desvitalizar este também – diz o dentista.

Chamam desvitalizar. Faz parte dos jovens embrulharem os velhos em palavras forradas. É mais fácil para eles, mais fácil de dizer. Na realidade chama-se morrer. A minha mulher nem sei se está viva, se está morta, se como está. É estranho sabe. Estou demasiado amarrado às palavras vigilantes dela. Vê-la entubada até aos miolos, sugada por uma maquineta dos trezentos cheia de luzinhas cintilantes que me fazem arder os olhos de tanto as olhar, sem sentir um resquício de vida mesmo animal que seja, um grunhido, um ai de dor. Não passa de uma carcaça alimentada forçosamente. É um dente desvitalizado.

- Temos de aguardar – diz o médico

E confesso-lhe. Um dia desligo a maquineta. Prolongamos demasiado a vida. Há situações que a vida já não existe, apenas a sua sombra. Esticamo-la por egoísmo ou esperança, por hábito – hábito é egoísmo. Por isso, um dia desligo-a e levo a minha mulher. Passar uns minutos só com ela. E despedir-me. Sobretudo isso. Despedir-me.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Domingos Eucarísticos

Quando fui criança, o domingo era uma insónia eterna e repetida. Um pedaço de tempo separado. Era o dia dos crentes em roupa nova que ouviam patres salivosos de homilias frescas. Haviam os banquinhos de igreja em castanho-caca que carregavam as viúvas e as suas devoções, que eram muitas, a bichanarem segredinhos a deus. Nas mãos engelhadas de gebas viam-se contas de terço rodopiarem num frenesim ansioso. E eu inocente, acompanhava a minha tia solteira, mais viúva que elas, que talvez pedisse a deus uma única noite de sexo, de prazer, ou só companhia. Esperança ao menos. Talvez pedisse um filho, que é uma forma mais séria de obter o mesmo. E eu inocente.

A minha tia solteira, porque era solteira, tornara-se um rio de sentimentos solteiros canalizados com um único fim: o esquecimento. Nada mais. Apenas suportar a rotina, aceitá-la e rezá-la. E enquanto o pater levantava uma lua-cheia e a enfiava nas goelas não sei como, esperando de mãos no peito que ela se digerisse por si; eu pensava no copinho que a minha tia solteira usava para medir o arroz porque me dava fome vê-lo comer. Até que se ordenavam filas de exército enquanto eu ficava no banquinho a ver o pater enfiar hóstias em bocas humildes. Uma ou outra vez, o pater zangado sacudia os dedos olhando para um velho outro, que lhos tinha babado. Era a comunhão.

Eu no banquinho ouvia

- Vem Cristo, Vem – em coro finíssimo.

Em vez de Cristo, vinha a minha tia. Hirta e virgem.