sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Vermelho Redundante

E o maluco lá ao longe aos berros:
- A cantar desde mil novecentos e dezanove

Os candeeiros dobravam-se como num holocausto, distorcidos por fortes ventanias. As janelas espreitavam a agitação com meias persianas fechadas, outras completamente desnudadas deixavam espelhar as suas vidraças como córneas húmidas de choro ou vento. Mesas e cadeiras caminhavam com quatro patas cada, pelos passeios ao longo das vitrinas dos cafés fazendo rumores e ecos sempre que pousavam as patas na calçada torta.

E o maluco lá ao longe sentado na soleira:
- A droga faz mal às células

As bandeiras das grandes empresas resmungavam feitas velas, repuxando os passeios onde estavam presos os mastros como cabelos pretos, cavando fendas profundas de raiva, onde se soltavam veias de água canalizada.

E o maluco cinzento esguedelhado:
- Cagaré, mijaré, foderé

No meio de um tudo isto passavas de vestido vermelho redundante. À Jorge Palma.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Noite


Sente-se aqui, a sério, não se vá embora, olhe prometo-lhe que não falo mais dos fantasmas do escuro e das penumbras ocultas, dos ruídos vestidos de noite ou das ruínas cansadas, prometo-lhe falar das manhãs de café na Pau de Canela com as bicas castanhas e um pastel. A sério, sente-se aqui, já viu como Lisboa é tão solteira deitada na noite do Tejo, as luzes são tão poucas e as esquinas desdobram-se com vagabundos de peste estrangeira, e já viu os degraus, existem tantos degraus por aí, quando era pequeno sempre gostava dos degraus, das fissuras dos degraus. das gengivas dos degraus, dos musgos e ervas daninhas, mas não se preocupe que não volto a falar da noite, fique só aqui comigo. Senão se importava eu ficava melhor sentado desse lado junto ao candeeiro camarário, não é que tenha medo, é que o doutor insistiu para que eu apanhasse luz

(Oh pá, tu sai do buraco que ficas enfezado pá)

de modos que tenho saído mais, repare que no outro dia dei mais do que uma volta pelo quarteirão, saí ali do mercado das frutas e rodei rodei e voltei a passar lá um infinito de vezes, o andar faz-me bem. Olhe quer um cigarro, o doutor não me desaprova os cigarros

(Oh pá, tu fuma pá, não me morras é saudável)

o doutor gosta muito de mim, diz que sou a pessoa com mais doenças no bloco

(Rosinha, chama aí o gajo que mais doenças tem)

mas o meu maior mal ele não acerta, é que já lhe disse que as noites eram mais longas para mim do que para o comum dos mortais, os relógios param em minha casa, conspiram, palram frequentemente ululuando pela casa, fazem-me uma trama, atrasam-se propositadamente, as roldanas entrelaçam dentes barulhentos, parecem às vezes que aguçam os dentes em cada segundo, juro-lhe, acredite em mim, um dia destes resolvi deitar-me com um martelo disposto a partir um, mas durante a noite eles fazem-se maiores do que eu, muito orelhudos, fazendo sombras escabrosas e lançam correntes de corda que me fustigam.

A sério, espere, não se vá embora.

(Rosinha, chama aí o gajo que mais doenças tem)