O velho ourives retirava os óculos da cara, bafejava dois sopros assassinos em cada lente murmurando silêncios em cada sopro. Estendia os óculos à frente do nariz, com muita dificuldade visual verificava-lhes as poeiras e dedadas teimosas. Apertava e desapertava os maxilares como quem rumina uma digestão que sobrava.
- Não sei o que aconteceu – disse eu
Ele levou instintivamente os óculos à fralda da camisola, aperto-os entre o pano massajando as lentes.
- Hmm-hmmm – respondeu
Voltou a levar os óculos acima do nariz, teceu um ritual de inspecção minucioso e montou-os em cima do mesmo nariz enquanto fechava os olhos com medo de falhar. Continuei a falar e ele
- Hmm-hmmm – espontâneo.
Calei-me. Os relógios em sinfonia desorganizada cresciam sobre mim monstruosos, mesmo os mais pequenos berravam como judeus nas suas câmaras de vidro a servirem tempo às fatias. Aproximei-me do velho ourives, jurava tê-lo ouvido murmurar. Mas da boca dele apenas saiam silvos de saliva apertada entre dentes na ocasião em que volta a descer os óculos, verifica uma última poeira que só ele acredita ver, talvez escondida entre o aro e a lente, imagina os filhos que poderia lá criar se ali ficasse e o obstáculo à sua visão. Franzia a testa em busca dela, irritava-se e juntava a uma árvore genealógica imaginária todas as poeiras e seus descendentes ao longo dos tempos.
- Acha que me pode ajudar – perguntei
Na sua absorção de arqueólogo interrogava-se pela poeira, se não era poeira que fosse cisco ao menos, tanto melhor, mais luta daria.
O velho jornaleiro enfiou os olhinhos assustados na escuridão da ourivesaria. Apertava um relógio mais fino que uma casca de ovo entre as mãos como se fosse a notícia mais secreta que algum dia tivesse vendido. Fixou-me durante um instante e subitamente entrincheirou-se dentro do armário das amostras.
- Não sei o que aconteceu – pronunciou-se aterrado
Marrava contra a porta do armário, apontava tudo o que era relógios com expressões de guerra. Talvez copiadas de um qualquer jornal.
- Hmm-hmmm – desprezei eu.
Continuou a olhar para mim, a seguir os meus gestos, dispunha-se trémulo e abandonado como um órfão desdentado que esperava ouvir uma canção de embalar. Tagarelou algumas palavras e eu
- Hmm-hmmm – pacientemente.
Eram quatro horas, os relógios soltaram as alegres vozes ordenadamente, envolviam toda a ourivesaria num halo musical a lembrar paisagens campestres. Os que não cantavam por não lhe terem dado cordas para cantar, marcavam passo numa marcha solene, vigorosa. Militar. Quase artística. O velho jornaleiro derreava-se como um cão em volta do balcão dando pinotes aflito, farejando tudo quanto é sítio até enfiar a cabeça entre as minhas pernas. Muito perto estive de falar mas calei-me.
- Acha que me pode ajudar - perguntou
Fingi interessar-me pelos aros dos meus óculos, pela cor que nunca tiveram, imaginei nas lentes em vez de vidros mostradores a darem horas. Pensei-os diversas vezes na esperança de ser amanhã.
Um relógio
- Eu canto!
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