Abro a janela deste quartito no terceiro andar, ainda ali permanece a
solidão, muito quieta e solene, sentada no banco da praça (no banco
junto à fonte, não no outro). Também para que lhe serviria mexer-se
muito se é tão bom vê-la ali quieta, os olhos duas bugalhas húmidas,
muito fitos em mim, a comoverem-me. Inquieta-me a sua persistência em não
me abandonar, a sua ousadia eterna. Nunca tive ninguém que pernoitasse à
minha janela. Quanto tempo esperará até me conquistar?
Entra a primeira claridade matinal (serão quê, nove horas?), faz-se
sentir o ar renovado pelo descanso que a noite às vezes traz, e a
solidão no banco a acenar-me. A Zulmira já vai tempo que arrasta sacos
na praça, os bifes, o pão, os legumes. Sempre me transcendeu o ódio que
os velhos ganham aos sacos plásticos: o mexer, o restolho do plástico, o
dobrá-los em triângulos na gaveta, o trauma da reutilização.
Produzissem sacos plásticos mudos, que apertados não exibissem nenhum
ruído, e desfalecia a Zulmira de tédio por lhe ficar em falta a
singularidade da vida, o seu labor, o objeto da sua dedicação,
dissipava-se a busca de algo, a meta. Em suma, o futuro.
Penso e repenso se convido a solidão a entrar. Estou demasiado desajeitado para receber visitas em casa. Casa que não é casa.
- É um quartito e uns asseios com vista rio - disse-me o senhorio na altura.
O
cabelo está-me muito oleoso, o roupão assenta triste no corpo que
tenho, as pantufas rotas nos calcanhares, o quarto que cheira a livros e
a pó. Decido-me a convidá-la mesmo assim, arriscando mostrar a mais
pura gema do que sou.
Se desço agora, a Zulmira ouvindo os meus passos, destranca o ferrolho no segundo andar e espreita:
- O menino quer cá vir almoçar hoje? Onde come um, comem dois.
Prefiro
não descer. Por que esperará a solidão por mim e não pela Zulmira? Serei
eu mais só que uma velha envolta em plásticos coloridos? Vou à janela e
aceno, para que venha, que entre. Ela sorri-me delicada. Levanta-se,
arrasta a mala até à porta do prédio, deixo de a ver da janela, ouve-se o
batente da porta a fechar, e agora só passos. Há passos que nos marcam.
Na memória às vezes restam só passos de alguém que passou no tempo e no
sentimento. Sobe-me uns tremores no ventre, sinto-me tenso e ansioso.
Ainda saberei entregar-me a uma mulher?
Abro a porta a correr e ela já parada a sorrir. Puxo-a para dentro
hesitante e ela tão calma, tão bela. Há um beijo que aparece entre nós
que nos leva até à cama.
A solidão tem amor e fidelidade de cão.
Parece-me tão impossível alguém amar assim, sabendo que amanhã podemos
já não querer a solidão de ontem.