sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ensaio Mal Ensaiado Sobre os Efeitos do Álcool

O que tem para eu beber amigo? A cerveja não sei o que ela tem que me cai mal. Vinho também não posso beber que me deixa bêbado. Sabe que o vinho uma pessoa bebe um copo aqui com um amigo, outro ali com um amigo, mais outro acolá com um amigo e dá por si tem dois litros cá dentro. Sirva-me um uísque. Desse novo, o senhor sabe qual é.
E eu estou aqui mas não estou a ouvir o senhor, tá a compreender? Eu vou ficar aqui a falar sozinho. Porque eu gosto, percebe? E tudo o que eu disser agora é para mim:

[
A vida é triste, a vida é bela e temos sempre sempre de viver nela. Eu não sei falar, eu esqueci-me de falar francês.

- Jeécris ou tu m’écris?
]

Esta agora é para você. Existem pessoas. Muitas pessoas, poucas pessoas. Quantas menos melhor, tá compreender? Tá perceber o que eu digo? Existem os brasileiros. Os brasileiros são, como é que se diz? Os luso-portugueses. São luso-portugueses porque os brasileiros não existem, tá compreender? Percebe o que digo ou não? Eles não existem. Mas tenho razão ou não? Mas não tenho razão de nada. Porque gosto de toda a gente.
E agora falo sozinho outra vez. Só para mim:

[
Eu tenho capacidade de me fazer de manhoso. Eu faço dupla personalidade. E eu estou aqui e não estou a ouvir a conversa de ninguém. Falo sozinho e só. Não, não, não. Provavelmente é isso. E eu disse-lhe

- A senhora está aqui para ir para a passerela. Porque para a entrevista chumbou.

Sou especialista em avaliar corpos. Porque eu até gosto de andar de pavilhão em pavilhão e como sou especialista, avalio corpos.
]

Esta é para você. Eu sou aposentado da força aérea. Sabe que a força aérea anda sempre pelo ar.

- Estive em duas guerras. Guiné

[
Eu não sei falar, eu esqueci-me de falar francês.

- Peux-tu m’indiquer la direction?
]

Eu às vezes faço estas conversas sozinho e canto. É uma brincadeira. Eu tenho dias que ando com uma cadela, tá a compreender? Eu tenho muitos amigos. Amigo é aquele que me dá uma sapatada e me enfia num táxi para casa. Percebe o que digo?
E agora só para mim, muito alto só para mim. A rezar:

[
- Se você se mata eu mato-me consigo.

- Se você se mata eu mato-me consigo.
]

terça-feira, 22 de junho de 2010

Avô Abismo

Estendeu-me um olhar esverdeado e molhado que afirmava ser capaz de me conhecer. A boca aberta num rasgo preto onde nunca viveram dentes desde que me lembro. Pensei que me olhava, talvez me tenha olhado. Visto mesmo. Ou talvez apenas um lampejo de memória. Uma recordação. Uma nota solta de uma peça musical que não sabemos bem qual. E ficou ali, todo olhos, todo olhos e um rasgo preto na boca que não mexia, que não formava mais nada para além do abismo. Talvez não tivesse forças já para do abismo fazer sair um qualquer ruído. Ou teria guardado as forças todas na contenção da urina sempre fugidia que não poderia no momento

- Agonia - disse ele

Agonia num silvo. E os olhos fecharam-se cansados de ver, o abismo abriu-se um pouco mais e entravam e saíam colheres de papa ralada, ora para dentro, ora para fora do escuro imenso. Deixava-se a mastigar com as gengivas as papas eternas, sempre desconfiado no seu íntimo que uma espinha poderia aparecer solitária e abafá-lo.
Longe iam os tempos em que passeava no átrio da casa de um lado para o outro, enxotando um sortido de netos, varrendo ao fundo um grupo de tias. Os netos trava-os todos por Paulo e lançava

- Oh Paulo, Paulo? Foda-se. Quietos. Cachopada do caralho.

Que se ouvia duas vezes do eco que fazia. Já nessa altura a memória era pouca. Bem guardadas, só as memórias da eterna Maria Cândida. A primeira paixão do meu avô por entre folhas verdes de milho. Sempre que lembrado, sorria abafadamente com a mão à frente da testa, escondendo as faces rosadas, ainda a desejá-la.

- Cagai-lhe à porta e dizei que foi um cão - rejubilava ele.

E ria-se sofregamente uma tarde completa.

- Coitadinho - desprezava a minha avó

E o abismo sempre a mastigar à procura da espinha. A engolir muito demoradamente o último prazer da vida. As pernas em feridas do sono contínuo na cama de ferro. Sobrava-lhe a vida em sonhos se ainda pudesse lembrar-se de como fabricá-los. Desejei-lhe a morte num relance enquanto ele

- Agonia

E o abismo daquela forma aberto, virado para mim, era o início da morte.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Deixe-me ser pequenino

Deixe-me ser pequenino. Prometo-lhe não pedir biberões quentes a meio da noite ou papas de cerelaque mornas antes de deitar. Consinta que me deite no seu colo, dormir um sonho só. Queria ver se repetia um que gostei muito, onde passeava com a Marina num barco a remos e não havia margens, não havia rio, éramos só nós, o barco e os remos. Hoje as Marinas são grandes demais, perdem o encanto da inocência alegre. Acumulam demasiados defeitos.

E a luz um pouco acesa se faz favor. Não é pelo medo, é pelo ter que ser. Tudo em pequeno tem que ser. O penico deixe-o ficar por baixo da cama, não desse lado, deste, assim. Gosto de descer a meio da noite e enche-lo até cima, transbordá-lo se tiver vontade. Molhar um tapete e fugir para dentro dos lençóis e esperar que amanhã alguém limpe. Em pequeno pode-se esperar que alguém limpe. Alguém vem sempre limpar. E até lhe permito que me ralhe um pouquinho, diga um

- Anda lá que vais limpar

Para eu amuar um pouco e cobrir-me de lençóis a fazer buracos de lobo e a esconder-me com medo que o mesmo lobo espreite. Garanta que me deixa tirar um macaco do nariz e escolher o sítio onde largá-lo. É uma tarefa de estimulação esconder um macaco.

Nos parques conceda-me a liberdade suficiente de cair. Escorregar e cair. E se eu quiser abrir a boca deste cão aqui, porque quero, abro-a. Já vi na televisão abrirem bocas a leões. E quando me oferecerem alguma espécie de doce e eu o recusar, eu recuso sempre por capricho, tenha a bondade de o guardar no seu bolso que mais tarde eu procuro.

Liberte-me na rua com um tampo de uma panela e vai ver como eu ando de automóvel. Gosto muito de conduzir testos de panelas pelas ruas sem fim. E quando voltar, quero abrir a caixa de correio e esperar daquela coisinha fechada que não tenha só cartas, uma surpresa, alguma coisa. Espero um brinquedo.

Deixe-me ser pequenino antes que aquela luz ao fundo morra apagando-se.