segunda-feira, 19 de abril de 2010

Elas

Vestia uma, depois a outra. Escondido. Muito secretamente vestia uma, depois vestia a outra com roupas diferentes porque a segunda era igual à primeira. Nas profundezas da cave estavam as duas tão perfeitas, imóveis a pedir que lhes tocasse. Eu ouvi-as do meu quarto a segredarem pelas tubagens da parede até mim

- Fausto, ó Fausto

Atormentavam-me e eu cheio de sensações curiosas tinha de as espreitar. Descia as escadinhas para a cave, abria a porta ripada de madeira que cortava tiras de escuridão em fatias muito magras, acendia a luz pálida de capela, seguia até ao baú forrado a pele e enfiava uma mão dentro a procurá-las

- Fausto, ó Fausto

E eu procurava-as só com uma mão, a outra segurava o tampo do baú com os três pastorinhos de fátima a olharem-me de joelhos com olhinhos esquecidos de caco. Encontrava uma, depois a outra. Às vezes já vestidas, outras despidas pela última vez que lá estivera. Sempre que tal acontecia, acredite, vestia-as com topes decotados e saias pelo meio das pernas. Tão perfeitas, tão reais. Só vestidas me pareciam reais. Os joelhinhos magistrais, juntos e irmãos a pedirem-me que os beijasse. Os cabelos afirmavam-se brilhantes, as mãos eram muito iguais às suas. Mas não tenha medo, apenas gostava de lhes subir as saias, primeiro imaginava e só a seguir as subia, para ser mais demorado, mais real.

- Fausto, ó Fausto - chamava a minha mãe

Estou na sala, mãe. Estou a ver o Justiceiro. E enquanto ela descia à cozinha descascar batatas para o almoço, eu mudava de canal, e via os inocentes desfiles de moda, ansiando que a próxima surgi-se do biombo envolta em rendas. E pode acreditar, a novidade era do tamanho do mundo. Começava a crescer-me uma dor não sei onde, em forma de não sei como, e arrastava-me até à televisão para lhes dar beijinhos nas maminhas. Como incomodava o formigueiro eléctrico presente na vidraça do televisor. Como quebrava o real.

- Fausto, ó Fausto

Eram elas a chamarem-me. Não acredita? Eu cedia involuntariamente condenado, descia para a cave e ia tocar as barbies da minha irmã. Só esperava que estivessem vestidas. Tão perfeitas

- Fausto, ó Fausto

Naquele tempo tão reais. Pode amar-me?

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Segundas pela manhã

Às segundas pela manhã tenho uma especial atenção pelos costumes remelados da sociedade. Contemplo gravatas passantes cheias de pressa a dar a dar. Umas rebeldes ao vento, já outras presas por mãos sapudas ou abas de colete. Mas umas e outras conversam mal-dispostas sobre bola e pernas de mulher. Uma gravata ao fundo soluça a café. De esquinas diversas juntam-se também os sapatos de tacão: há-os elegantes na passada, os altivos, os que condenam o tempo com toc-toc ou os roliços com boquinhas torcidas. Falam de nada com carácter importante como se sentenciassem um pecado capital.

Duas velhas descem a rua com cabeleiras excitadas, trazem os rostos (conservados?) em gorduras, os bordos da boca aumentados até ao buço por batom encarnado ou rosa, daqui não vejo bem, para induzirem lábios carnudos e sedutores. Da boca de uma adivinho um travozinho a álcool.

E escondo-me num café matinal, onde o dono na penumbra fica a rir para dentro de um telefone à David Lynch. E contínua.

- Olé, espera aí que já vou – diz um velho de olhinhos fundos a admirar o par de velhas para além da vitrina, expressando vontades com palmadas na mesa.

Peço um café e o empregado muito mudo, fica a medir a distância entre ele e a máquina de café, calculando e exagerando o esforço. Torce o beiço desgostoso até perto da orelha e vai contrariado como um menino que satisfaz as vontades do pai.

- É pá, um gajo é fazê-las em quanto pode – sentenciou o dono e trocou o telefone de mão.

O empregado atirou-me o café para o balcão rudemente e com gestos mal articulados de tão pouca vontade. Lentamente fui acompanhando os diferente planos. Ao fundo do café, um casal de gatos iniciava-se na vida amorosa sobre uma cadeira

- Ih, ih, ih, ih – ouviu-se.

E nem soube se tinham sido dores de gata ou o escárnio do velho a contemplar a natureza.