quarta-feira, 17 de março de 2010

Desvitalizar

Grande pratalhada trás o amigo. Tem assim apetite. Eu em tempos comia bem, comia isso e muito mais. Ultimamente aconteceram-me coisas pesadas que me retiram o prazer em comer. Como uma sopita, as côdeas de pão não as mastigo, faltam-me dentes. O médico brocou estes três deste lado e dois aqui em baixo, está a ver. Aqui assim. Não, deste lado, veja: esgadanhou-me todo. Também não preciso deles. Desde que a minha mulher foi parar ao hospital vai um mês, perdi o apetite. Sinto-me sozinho, sabe. Uma pessoa da minha idade apanhada desta maneira. Chamo a isto o tufão da vida, compreende. Vem assim de repente leva-nos mulher, companhia, alegria e nem a merda dos dentes me deixa na boca. Eles já não valiam nenhum então para que mos tirou.

- Temos que desvitalizar este também – diz o dentista.

Chamam desvitalizar. Faz parte dos jovens embrulharem os velhos em palavras forradas. É mais fácil para eles, mais fácil de dizer. Na realidade chama-se morrer. A minha mulher nem sei se está viva, se está morta, se como está. É estranho sabe. Estou demasiado amarrado às palavras vigilantes dela. Vê-la entubada até aos miolos, sugada por uma maquineta dos trezentos cheia de luzinhas cintilantes que me fazem arder os olhos de tanto as olhar, sem sentir um resquício de vida mesmo animal que seja, um grunhido, um ai de dor. Não passa de uma carcaça alimentada forçosamente. É um dente desvitalizado.

- Temos de aguardar – diz o médico

E confesso-lhe. Um dia desligo a maquineta. Prolongamos demasiado a vida. Há situações que a vida já não existe, apenas a sua sombra. Esticamo-la por egoísmo ou esperança, por hábito – hábito é egoísmo. Por isso, um dia desligo-a e levo a minha mulher. Passar uns minutos só com ela. E despedir-me. Sobretudo isso. Despedir-me.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Domingos Eucarísticos

Quando fui criança, o domingo era uma insónia eterna e repetida. Um pedaço de tempo separado. Era o dia dos crentes em roupa nova que ouviam patres salivosos de homilias frescas. Haviam os banquinhos de igreja em castanho-caca que carregavam as viúvas e as suas devoções, que eram muitas, a bichanarem segredinhos a deus. Nas mãos engelhadas de gebas viam-se contas de terço rodopiarem num frenesim ansioso. E eu inocente, acompanhava a minha tia solteira, mais viúva que elas, que talvez pedisse a deus uma única noite de sexo, de prazer, ou só companhia. Esperança ao menos. Talvez pedisse um filho, que é uma forma mais séria de obter o mesmo. E eu inocente.

A minha tia solteira, porque era solteira, tornara-se um rio de sentimentos solteiros canalizados com um único fim: o esquecimento. Nada mais. Apenas suportar a rotina, aceitá-la e rezá-la. E enquanto o pater levantava uma lua-cheia e a enfiava nas goelas não sei como, esperando de mãos no peito que ela se digerisse por si; eu pensava no copinho que a minha tia solteira usava para medir o arroz porque me dava fome vê-lo comer. Até que se ordenavam filas de exército enquanto eu ficava no banquinho a ver o pater enfiar hóstias em bocas humildes. Uma ou outra vez, o pater zangado sacudia os dedos olhando para um velho outro, que lhos tinha babado. Era a comunhão.

Eu no banquinho ouvia

- Vem Cristo, Vem – em coro finíssimo.

Em vez de Cristo, vinha a minha tia. Hirta e virgem.