quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Minha Mulher

Todos os dias de manhã desarrolho o frasco e deixo cair umas poucas migalhas lá para dentro. Com muitos cuidados para que não fuja minha estimada mulher. As migalhas são de variados tipos de pão: broa de milho, carcaça ou baguette. Sempre gostei de estimar a minha mulher com o melhor. É com grande apreço que a paparico com carinhos. Tem dias em que sou realmente generoso e lhe deixo cair pelo tampo do frasco um torrão de açúcar. Fico regalado de a ver feliz pela prenda e vejo-a percorrer as paredes redondas do frasco em sinais de agradecimento. Outras vezes, corto frutas várias em pequenos pedaços e vejo-a lambona e de olhos arregalados, chupar o sumo doce das frutas.

Durante o dia, enquanto vou trabalhar, substituo a tampa do frasco por um coador do leite. Assim fico seguro que o ar circulará facilmente por todo o frasco e minha mulher não morrerá de calores ou asfixia. Quando regresso a casa, tenho uma grande recepção de felicidade. Minha mulher passeia-se pelas fronteiras de vidro cumprimentando-me com zumbidos que nem sempre percebo. No entanto gosto. São gestos humildes e naturais de contentamento.

Depois de jantar vemos uns programas que passam na televisão e tenho muitas conversas com ela sobre o que passa na caixa fosforescente. Poucas vezes me responde e quando o faz, é sempre em sussurros que ainda estou a aprender a interpretar. Tudo isto faz parte da convivência e da descoberta de cada um. Ocorre por vezes, um aborrecimento da minha parte quando a minha mulher se cala e esfrega as patas umas nas outras: começando nas da frente até às de trás. A falta da atenção dela para comigo leva-me a agitar o frasco e provocar-lhe uma reacção. Quando assim é, esvoaça pela vitrina do frasco e resmunga coisas sibilantes às quais não ligo.

Antes de me deitar, coloco o frasco dela a meu lado na cama e contemplo-a. Certifico-me que a tampa ficou bem apertada nas roscas e conto-lhe uma história de um livro que satisfaça os dois. Quando apago a luz sinto uma felicidade eterna em ser casado com uma mosca respeitável e obediente. E nisto olho para ela, a ver se já dorme.

Fantasmas


Descalço e vestido apenas por um lençol de banho caminhava eu pela avenida do Marquês de Pombal. Como se estivesse a sair do banho e fosse directo para a rua. Sentia-me ridículo conforme pode imaginar-se. Ou diria antes: desprotegido, é mais verdadeiro. E em pensamentos absolutos de nudez vou-me dirigindo para o mini-mercado com néons verdes claros e escuros, esperançado de sei lá! Sair vestido, talvez.

- Mas nem carteira tenho, foda-se! – pensei – Bem, mas se estou a dois passos de casa, visto-me em casa. - e dei dois passos para casa.

A caserna do quinto andar à qual chamava casa, ficava no prédio em frente onde me encontrava. Toda esta rua era pintada de casernas iguais, datadas da mesma época e de aspecto semelhante. No entanto, só aquela era a minha casa.

Enfiei a chave na porta, nem sei de onde a tirei, nem como a trazia. Dado lençóis de banho ainda não terem bolsas para objectos pessoais para facilitar as vidas de quem se passeia pelas ruas nestes preparos.

Nisto de abrir a porta, entrar e evitar que as vizinhas passantes me apanhassem em figuras reduzidas, apressei-me a ser breve e rápido quando me deparo no hall de entrada com os condóminos reunidos. Nesse preciso momento, estava a desenrolar-se a reunião de condomínio mensal na entrada do prédio, onde o espaço é de todos e de ninguém.

Praticamente em pelota, dignei-me a baixar a cabeça de vergonha e fisguei-me para os elevadores, quando me deparo com dois bispos no caminho. Um de cada lado com barretes papais, guardavam o que supunha ser uma reunião de condóminos. Um deles dirigiu-me várias palavras em latim – penso que latim – nas quais dei a minha melhor resposta católica que sabia.

- Deus esteja consigo Padre – cumprimentei.

E enfiei-me dentro do elevador velho, carreguei no botão do quinto andar que accionou imediatamente a suspensão do caixão espelhado. Quanto mais ele subia mais eu me ria. Toda a situação me era cómica e sempre me desejei a provocar os patriarcas de Deus. Mas no fundo, era vergonhoso. Logo hoje que me apanhei em trajes pouco católicos.

O elevador estancou. Abri a porta ferrugenta e dou-me de frente com a porta dos vizinhos aberta, de onde saíam grandes fumaças de incenso. Ouviam-se ais misturados de gemidos e saiu-me de rojo a vizinha vestida um tudo-nada em cabedais, amordaçada no pescoço por um cadeado taludo segurado pela mão do vizinho. E ela gemia enquanto avançava para mim.

Raspei-me, raspei-me bem para dentro de minha casa e ouvia-a do lado de lá. Ainda espreitei pelo monóculo da porta: montava-se o vizinho a cavalo nela e ela gemia ainda mais. Só pensava nos Bispos e na reunião quando me entrou o fumo de incenso pelas frinchas da porta. E ela gemia, gemia.

Metáfora

Num autocarro vinha acompanhado por ela. Num autocarro. De lado a lado como é normal nos autocarros. Parece-me que a tinha beijado, fiquei com essa sensação. A sensação inesgotável da última tentativa. Também me parece que fui rejeitado. Seria normal. Mesmo assim, não me interessava o que acontecesse. O meu objectivo era mais profundo. Precisava de uma atenção conhecida. Precisava de ser protegido. Fui deixando descair a cabeça até tocar no ombro dela. Fui-me esfregando como um gato. Ronronava e baixava ainda mais a cabeça. Ela resmungava com voz doce, que não podia fazê-lo, que não podia ser. Eu implorava! Talvez implorasse. Implorava e descia ainda mais a cabeça até ao seu colo. Ficava lá à espera que uma mão doce e leve pousasse na minha testa e me serenasse as ondas do cabelo. Não acontecia. Levantava-me e repetia o ritual. Murmurava-lhe umas palavras.

A paisagem cá fora era fosca. Nunca a tinha visto. Nem sei se a conseguia ver, se ela era mesmo para ser vista. Parecia-me uma paisagem morta. Tons verdes turbos.

Propus-lhe um jantar. Um jantar como em outros tempos. Um jantar alancharado com uns fast-foods rápidos. Uma prática típica, apelando à sua memória. Não me lembro se aceitou. Talvez o tenha feito.



Encontro-me fora do autocarro. Havia uma praia? Talvez! Era vago demais para ser registado. Nisto corri e saltei uma vedação. Do outro lado vejo-a tentar transpor a vedação. Sem sucesso. Ela cometia o mesmo erro demasiadas vezes. Tentava sempre o mesmo ponto da vedação, sempre. Disse-lhe



- Porque vais sempre por aí? Fazes sempre o mesmo.



Não ligou! Manteve-se inalterável Apareceram dois tipos perto dela na mesma situação. Fiquei com ciúmes deles. Sentia-me ameaçado. Para resolver a situação da vedação, agarrei na parte inferior, puxando com força a rede até mim, fazendo um buraco por onde passou ela e os penduras.



Repentinamente apareço a deitar-me numa cama, dentro de uma casa esquisita. Era um castelo? Podia sê-lo. Lembro-me de controlar as temperaturas, pensado se estava frio ou não. Ora tinham subido dos dois graus para os sete. Estava a ficar bom. Esperava na cama que ela viesse. Que entrasse nos mesmo lençóis e partilhássemos a temperatura. Mas não veio.



Dou por mim com a mãe dela sentada na minha cama. A mãe trocava-se de roupa. Despiu a sua roupa sem cor nem memória e lembro-me de lhe ver despontar um seio. Olhei sem admiração e só pensava na filha que não vinha. Perguntei à mãe



- Tem frio? Quer mais um cobertor?



Disse-me que não e deitou-se no meio da cama, dividindo o espaço que poderia ser meu e da sua filha. Percebi que era o fim. Que por mais que ela viesse nunca nos poderíamos tocar. Era o quebrar do sonho. Podia virar costas e dormir. Já nada de mais me acrescentaria à noite. Pensei



- Para que lado vou dormir? De frente para a mãe? Ou de costas?

Sidónio

O Sidónio é um rapaz imberbe de vinte e poucos anos. Vive atarantado com dificuldades várias naturais da idade. Ora é no emprego, ora a vida que não acerta no carril, ora a vizinha com ar doce que nunca mais lhe pediu o óleo de fritar. Das pequenas coisas vive e se aborrece o Sidónio. Tomou uma casa em Lisboa, um T0 solitário sem varandas, onde habitualmente passa noites solitárias recheadas de sonhos movimentados e suspiros salteados. Por vezes tem uma saída por outra, se é amiga ou namorada não sabemos, nem o Sidónio nos esclarece, pois possuí uma grande dificuldade no que toca a distinções de uma em relação à outra. Não nos importemos.

Para feitio de sala de estar, por entre móveis todos linhas direitas, destes modernos em contraplacado, o Sidónio faz-se acompanhar da Lucy. Um esqueleto feminino - assegurou-nos dada a largura de ancas. Confessou-nos também por detrás das lentes míopes que nunca aceitaria a companhia de um rival macho em casa. É deveras uma esqueleta. Possuí um laçarote rosado no topo da caixa craniana, ele garante que a torna mais feminina. No resto do corpo veste-se de avental às listas vermelhas e brancas e um estetoscópio pendurado no pescoço para as aflições.

Da janela com vista para o mar o Sidónio costuma queimar um cigarro por outro, apanhado brisas marítimas nas faces brancas. Em tempos quentes, deixa ficar a janela aberta para refresco das paredes. Uma vez por outra passeiam-se formigas pelos regos dos azulejos. Um rato por outro também pode passar. Torna-se uma pequena reunião de animais comuns dos quais o mais estranho: Sidónio.

Solidão

E subo e desço o Chiado. Tudo gente estranha. Uns estrangeiros que apontam objectivas potentes ao nariz do Pessoa. O Pessoa. Sem óculos. Um dia passei por lá e pus-lhe os meus. Tive cuidado, com os óculos claro. Assim pareceu-me mais real. Sinto essa necessidade por vezes: tornar o que me rodeia mais real, mais autêntico, menos fusco. Subo direito ao Trindade para ocupar tempo, vendo as montras e os anúncios vários das peças em cartaz. Contorno o Trindade e volto a descer para a praça Camões. O rio ao fundo dá-me a sensação de uma luz que se deixa acesa num escritório escuro. Num canto dois pombos amealham migalhas perdidas ou areias para a digestão. E eu migalho a vidinha para cima e para baixo, em expectativas de só.

Nos armazéns do chiado faço uma necessidade básica que a poupo ao leitor nos detalhes. Somos todos parecidos nestas coisas. Tomo um café e mastigo uma torrada seca. Pago bem. Nestas coisas não se perdoa. E volto a subir, o Pessoa pareceu-me mudar a pose, pareceu-me. Na rua vai um táxi, outro táxi. Tudo gente de pressa. E bato pé até ao miradouro. Compro um jornal para poder passar o tempo enquanto o dia escorrega suavemente. Dirijo-me às grades que torneiam todo o miradouro e deixo-me a cheirar odores que sobem, a ver laranjas de telhados, cinzentos-estátua e outros sítios por onde a solidão entre gente é muita.

Aconchego-me num banco e estendo o jornal. Podia bem ficar aqui a ver as pessoas falarem, a ver o barbas do lado a escrever – se calhar de mim e eu agora dele. Mas abro o jornal. Comprei-o para esse efeito básico. Também não dará para mais. Abrir e ler. Ler a vida dos outros. Ver o que é meu e de todos. E assim sinto-me mais integrado, mais vivo. Tudo isto porque faço um gesto comum. Sinto vontade de ser comum sem ser ridículo.

História da Minha Terra

Um pastor guardando cento e tal ovelhas

Um padre confessando velhas

Um pintor que deu à luz um ser pintado

Um candeeiro de pé sempre acordado

Um Tio de França que regressou

Um comboio que partiu e já mais voltou

A memória do moinho da minha Terra

A mesma memória que se enterra

Dois compadres a darem ao dente

O Ferreira Barbeiro cortando rente

Cabelos loiros morenos da gente

Um sino que toca a rebate

Dois pelintras no engate

O Padre velho alto de fascina

Duas velhas surdas que não percebem patavina

Uma pomba da Paz pendurada numa cruz

Um tornozelo de velha que grita “Ai Jesus”

Uma boca feia outra analfabeta

Uma é da Rosa outra da Felisberta

O café da Terra cheio de moscas

A Mena Peixeira vendendo as ostras

O Zé na cama com a Ana Mamalhuda

O irmão espreitando pelo buraco da agulha

O burro do Jacinto a pastar

E o burro do Jacinto a olhar

Um fulano que levou um tiro na caixa-da-ferramenta

Pelo menos é o que se comenta

Um sacristão que vende cautelas

O mesmo sacristão apanhado a roubar parcelas

Uma história que se conta

Outra que se mente e se aponta.