quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Lucianinho

Sente-se aqui senhor luciano, sente-se neste banquinho de tábuas ripadas e olhe-me para o tejo, consegue ouvir o ressonar da ponte enquanto dorme? A ponte. De manhã, grita em uivos de comboio carregada de filhos nos longos braços vermelhos, já à noite senhor luciano, à noite cai neste cansaço embalado pela monotonia tejeana, já sem filhos, menos arcada, menos forte. Consegue ouvir?
De modos que venho até aqui. Costumo espraiar-me nestes pequenos bancos com frases de amor gravadas na madeira, outras de fúrias começadas por éfe, promessas eternas com caligrafia tremida, pensamentos profundos

(Em casa sem tesão, no estádio de bastão)

esta é pós polícias, olhe outra

(Zona anti-fascista)

É como lhe digo amigo luciano, discutir o senso da vida pode começar num banco virado ao rio. Normalmente sento-me confortavelmente e o mudo ambiente traz-me a solidão (há várias, mas vem sempre uma), vou descendo haustos de brande pela goela abaixo até aparecerem filosofias naturais. Ao redor estão todos os outros familiarizados com os seus amigos disfarçados ou amigos voluntários que gargalham até Almada. E percebo que nem isso possuo. Ninguém. Repare que venho para aqui sem razão aparente, apenas para evitar os segredos das paredes lá de casa quando sussurram a minha vida, não têm o direito. Sabe lucianinho, é insuportável sabermo-nos entregues ao destino dos outros. É isto a solidão: dependermos dos outros para podermos ser nós.
E depois temos as mulheres. Eu por filosofias diversas e brandes quentes como seios e elas na sua casualidade de mulher, provocam quem olha e distraem-me a pedirem lume, para depois desandarem o rabo volumoso e erguido quase até ao meu nariz, que daqui quase que lhe posso tocar, está mesmo aqui assim. E tudo isto é mísero lucianinho amigo, mísero.
Por estas e por outras lhe digo amigo lucianito, já sabemos que a sua cara escondida atrás dessa barba empoeirada, toda ela pó-talco, não o favorece; mas lute. O seu nariz de pistola também não é grande espingarda. Quer um brande para ajudar? E os dedos? Que dedos tem? Mostre-me, ah que devem ter cabeças de âncora e unhas pretas de cão. Há quanto tempo não está com uma mulher?

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A Lâmpada do Albino

Abro a porta da rua, pesada de madeira e de anos. A rua está enfeitada de automóveis coloridos com vidros espelhados pela luz atómica da manhã. São espelhos que reflectem um céu que não se vê. Os prédios altos e inclinados uns para os outros com chapéus de telha laranja-verdete recebem os pombos citadinos e civilizados, mas que mesmo assim não deixam de fazer merda.
Enquanto fecho a porta e sinto as primeiras brisas da manhã, vejo a lâmpada do Albino. Uma luz pálida de cave funda, com uma tristeza e segredo próprios de lâmpada de lar. O fio de tungsténio ardia até mim, passando pela janela gradeada que deixa um rasto amarelado. Do lado de fora, no peitoril da janela, nascia tudo em sombras uma chávena, uma colher que tilintava sons de café, a figura do Albino toda ela em pelota e calção-cueca, a barriga nua do Albino com pêlos salteados, as costas despidas como cabides, a mão que erguia agora a chávena, a boca que se aproximava aberta em concha, o trago de café que descia luminoso pela goela.
E ao fundo da rua já só brilhava a lâmpada do Albino abraçada de azul-cueca.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Vermelho Redundante

E o maluco lá ao longe aos berros:
- A cantar desde mil novecentos e dezanove

Os candeeiros dobravam-se como num holocausto, distorcidos por fortes ventanias. As janelas espreitavam a agitação com meias persianas fechadas, outras completamente desnudadas deixavam espelhar as suas vidraças como córneas húmidas de choro ou vento. Mesas e cadeiras caminhavam com quatro patas cada, pelos passeios ao longo das vitrinas dos cafés fazendo rumores e ecos sempre que pousavam as patas na calçada torta.

E o maluco lá ao longe sentado na soleira:
- A droga faz mal às células

As bandeiras das grandes empresas resmungavam feitas velas, repuxando os passeios onde estavam presos os mastros como cabelos pretos, cavando fendas profundas de raiva, onde se soltavam veias de água canalizada.

E o maluco cinzento esguedelhado:
- Cagaré, mijaré, foderé

No meio de um tudo isto passavas de vestido vermelho redundante. À Jorge Palma.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Noite


Sente-se aqui, a sério, não se vá embora, olhe prometo-lhe que não falo mais dos fantasmas do escuro e das penumbras ocultas, dos ruídos vestidos de noite ou das ruínas cansadas, prometo-lhe falar das manhãs de café na Pau de Canela com as bicas castanhas e um pastel. A sério, sente-se aqui, já viu como Lisboa é tão solteira deitada na noite do Tejo, as luzes são tão poucas e as esquinas desdobram-se com vagabundos de peste estrangeira, e já viu os degraus, existem tantos degraus por aí, quando era pequeno sempre gostava dos degraus, das fissuras dos degraus. das gengivas dos degraus, dos musgos e ervas daninhas, mas não se preocupe que não volto a falar da noite, fique só aqui comigo. Senão se importava eu ficava melhor sentado desse lado junto ao candeeiro camarário, não é que tenha medo, é que o doutor insistiu para que eu apanhasse luz

(Oh pá, tu sai do buraco que ficas enfezado pá)

de modos que tenho saído mais, repare que no outro dia dei mais do que uma volta pelo quarteirão, saí ali do mercado das frutas e rodei rodei e voltei a passar lá um infinito de vezes, o andar faz-me bem. Olhe quer um cigarro, o doutor não me desaprova os cigarros

(Oh pá, tu fuma pá, não me morras é saudável)

o doutor gosta muito de mim, diz que sou a pessoa com mais doenças no bloco

(Rosinha, chama aí o gajo que mais doenças tem)

mas o meu maior mal ele não acerta, é que já lhe disse que as noites eram mais longas para mim do que para o comum dos mortais, os relógios param em minha casa, conspiram, palram frequentemente ululuando pela casa, fazem-me uma trama, atrasam-se propositadamente, as roldanas entrelaçam dentes barulhentos, parecem às vezes que aguçam os dentes em cada segundo, juro-lhe, acredite em mim, um dia destes resolvi deitar-me com um martelo disposto a partir um, mas durante a noite eles fazem-se maiores do que eu, muito orelhudos, fazendo sombras escabrosas e lançam correntes de corda que me fustigam.

A sério, espere, não se vá embora.

(Rosinha, chama aí o gajo que mais doenças tem)

quinta-feira, 30 de julho de 2009

O primeiro amor

Descia eu da cadeira almofadada alta rastejando por ela abaixo, as calças subiam-me engelhadas até entre coxas, ficavam de fora os meus sapatos de fivela e meias brancas. Cá em baixo, escondido, envergonhado do estranho mundo de lá de cima, via sentar-se minha mãe na cadeira de dentista enquanto a cabeleireira perguntava como ia ser

(Qualquer coisa permanente)

No sofá de espera com uns óculos estrelares ouvia eu qualquer coisa permanente. Destroçado com os vocábulos estranhos remoía eu pensamentos. A cabeleireira era bonita. Ou talvez não fosse mas eu gostava de qualquer coisa envolta em produtos cheirosos - as barbies da minha irmã também eram bonitas.
Interessei-me em captar a atenção da cabeleireira. Fui à sacola, peguei no meu primeiro livro de aventuras e comecei a ler a história em voz alta com desenvoltura e confiança. As letras ainda eram recentes para mim. As junções só saiam à segunda ou terceira tentativas, as pausas de vírgulas eram suprimidas pelos longos tempos de soletração. A cada ponto final, voltava a repetir a frase com mais destreza, terminado-a com um grande elogio da cabeleireira. Uma nova frase começava - A mi, A mi-nha mãe, deu-me um, um... - corri para minha mãe, que tinha um capacete de motorizada na cabeça, e perguntei

(Oh mãe como se lê isto?)

(Kispo - disse ela)

Era kispo. Nunca tinha visto um capa. A cabeleireira descompôs-se num sorriso sincero que envergonhava a minha inocente figura. O caminho de regresso ao sofá fez-se muito grande com o embaraço e fui ficando esquecido por ali. Perguntei baixinho à minha mãe

(Oh mãe, porque não casas com a cabeleireira?)

terça-feira, 28 de julho de 2009

Matrimónio

- Tu não tens paciência que eu sei que não. Elas são complicadas. Repara bem: ela diz que vai pregar um prego. E tu: um prego?! Estás a ver? Tu vais-te chatear e não vale a pena.

(Pois eu tenho-a deixado à vontade)

- Uma coisa é certa e falo por experiência: tu podes ter uma parede azul e outra verde e achas que aquilo é a coisa mais bonita. Para ela é uma porcaria. Deixas ao gosto dela, tu não queres chatices. Vais ver que ela te pinta aquilo noutras cores e tu vais gostar. Nisso tenho de dar o braço a torcer. Elas sabem o que é bonito.

(Isso sabem)

- Não podes deixar é que ela te pinte a casa toda de cor-de-rosa. Tens de ter o teu espaço!

(Claro)

- Deixas a sala para ela cheia de fotografias e ficas com um quarto só para ti. Para escritório com posters de gajas nuas. Percebes?

(Pois...)

- É que tu vais-te chatear e não vale a pena porque ela ganha por insistência.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Eléctrico

Senta-te (ordenaste-me).

(Haviam diversos lugares desocupados) sentei-me. Num soluço teimoso o eléctrico arrancou em direcção à noite, fugindo melancolicamente ao halo alaranjado que formava uma abóbada sobre a cidade. A campainha tinia com suas cordas vocais gastas avisando peões que fugiam dos pequenos mercados, carregados de sacos plásticos claros, sussurrando orações sobre o preço das coisas.

Tu, calmamente e abstraída do eléctrico, da noite e das orações, tiravas a tua agenda forrada a pele de um boi-qualquer, e fazias apontamentos de incerteza. Planeavas (ou discutias?) com traços que rasgavam o papel, deixando um risco escuro e molhado que me brilhava nos olhos sempre que olhava para ti.

Atrás de mim via os riscos (carris) do percurso do trem que pareciam desenhados por ti. Escritos num terreno ladeirento, faiscavam à luz pública raios de azul relâmpago, e em cada raio via o teu reflexo que se aproximava, lentamente, solene, numa mistura de partículas foscas.

Ei, sonhador! Temos de sair.

(E eras tu por detrás de mim. De sorriso largo fazias-me uma pinta no nariz com a tua caneta de feltro.)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Minha Mulher

Todos os dias de manhã desarrolho o frasco e deixo cair umas poucas migalhas lá para dentro. Com muitos cuidados para que não fuja minha estimada mulher. As migalhas são de variados tipos de pão: broa de milho, carcaça ou baguette. Sempre gostei de estimar a minha mulher com o melhor. É com grande apreço que a paparico com carinhos. Tem dias em que sou realmente generoso e lhe deixo cair pelo tampo do frasco um torrão de açúcar. Fico regalado de a ver feliz pela prenda e vejo-a percorrer as paredes redondas do frasco em sinais de agradecimento. Outras vezes, corto frutas várias em pequenos pedaços e vejo-a lambona e de olhos arregalados, chupar o sumo doce das frutas.

Durante o dia, enquanto vou trabalhar, substituo a tampa do frasco por um coador do leite. Assim fico seguro que o ar circulará facilmente por todo o frasco e minha mulher não morrerá de calores ou asfixia. Quando regresso a casa, tenho uma grande recepção de felicidade. Minha mulher passeia-se pelas fronteiras de vidro cumprimentando-me com zumbidos que nem sempre percebo. No entanto gosto. São gestos humildes e naturais de contentamento.

Depois de jantar vemos uns programas que passam na televisão e tenho muitas conversas com ela sobre o que passa na caixa fosforescente. Poucas vezes me responde e quando o faz, é sempre em sussurros que ainda estou a aprender a interpretar. Tudo isto faz parte da convivência e da descoberta de cada um. Ocorre por vezes, um aborrecimento da minha parte quando a minha mulher se cala e esfrega as patas umas nas outras: começando nas da frente até às de trás. A falta da atenção dela para comigo leva-me a agitar o frasco e provocar-lhe uma reacção. Quando assim é, esvoaça pela vitrina do frasco e resmunga coisas sibilantes às quais não ligo.

Antes de me deitar, coloco o frasco dela a meu lado na cama e contemplo-a. Certifico-me que a tampa ficou bem apertada nas roscas e conto-lhe uma história de um livro que satisfaça os dois. Quando apago a luz sinto uma felicidade eterna em ser casado com uma mosca respeitável e obediente. E nisto olho para ela, a ver se já dorme.

Fantasmas


Descalço e vestido apenas por um lençol de banho caminhava eu pela avenida do Marquês de Pombal. Como se estivesse a sair do banho e fosse directo para a rua. Sentia-me ridículo conforme pode imaginar-se. Ou diria antes: desprotegido, é mais verdadeiro. E em pensamentos absolutos de nudez vou-me dirigindo para o mini-mercado com néons verdes claros e escuros, esperançado de sei lá! Sair vestido, talvez.

- Mas nem carteira tenho, foda-se! – pensei – Bem, mas se estou a dois passos de casa, visto-me em casa. - e dei dois passos para casa.

A caserna do quinto andar à qual chamava casa, ficava no prédio em frente onde me encontrava. Toda esta rua era pintada de casernas iguais, datadas da mesma época e de aspecto semelhante. No entanto, só aquela era a minha casa.

Enfiei a chave na porta, nem sei de onde a tirei, nem como a trazia. Dado lençóis de banho ainda não terem bolsas para objectos pessoais para facilitar as vidas de quem se passeia pelas ruas nestes preparos.

Nisto de abrir a porta, entrar e evitar que as vizinhas passantes me apanhassem em figuras reduzidas, apressei-me a ser breve e rápido quando me deparo no hall de entrada com os condóminos reunidos. Nesse preciso momento, estava a desenrolar-se a reunião de condomínio mensal na entrada do prédio, onde o espaço é de todos e de ninguém.

Praticamente em pelota, dignei-me a baixar a cabeça de vergonha e fisguei-me para os elevadores, quando me deparo com dois bispos no caminho. Um de cada lado com barretes papais, guardavam o que supunha ser uma reunião de condóminos. Um deles dirigiu-me várias palavras em latim – penso que latim – nas quais dei a minha melhor resposta católica que sabia.

- Deus esteja consigo Padre – cumprimentei.

E enfiei-me dentro do elevador velho, carreguei no botão do quinto andar que accionou imediatamente a suspensão do caixão espelhado. Quanto mais ele subia mais eu me ria. Toda a situação me era cómica e sempre me desejei a provocar os patriarcas de Deus. Mas no fundo, era vergonhoso. Logo hoje que me apanhei em trajes pouco católicos.

O elevador estancou. Abri a porta ferrugenta e dou-me de frente com a porta dos vizinhos aberta, de onde saíam grandes fumaças de incenso. Ouviam-se ais misturados de gemidos e saiu-me de rojo a vizinha vestida um tudo-nada em cabedais, amordaçada no pescoço por um cadeado taludo segurado pela mão do vizinho. E ela gemia enquanto avançava para mim.

Raspei-me, raspei-me bem para dentro de minha casa e ouvia-a do lado de lá. Ainda espreitei pelo monóculo da porta: montava-se o vizinho a cavalo nela e ela gemia ainda mais. Só pensava nos Bispos e na reunião quando me entrou o fumo de incenso pelas frinchas da porta. E ela gemia, gemia.

Metáfora

Num autocarro vinha acompanhado por ela. Num autocarro. De lado a lado como é normal nos autocarros. Parece-me que a tinha beijado, fiquei com essa sensação. A sensação inesgotável da última tentativa. Também me parece que fui rejeitado. Seria normal. Mesmo assim, não me interessava o que acontecesse. O meu objectivo era mais profundo. Precisava de uma atenção conhecida. Precisava de ser protegido. Fui deixando descair a cabeça até tocar no ombro dela. Fui-me esfregando como um gato. Ronronava e baixava ainda mais a cabeça. Ela resmungava com voz doce, que não podia fazê-lo, que não podia ser. Eu implorava! Talvez implorasse. Implorava e descia ainda mais a cabeça até ao seu colo. Ficava lá à espera que uma mão doce e leve pousasse na minha testa e me serenasse as ondas do cabelo. Não acontecia. Levantava-me e repetia o ritual. Murmurava-lhe umas palavras.

A paisagem cá fora era fosca. Nunca a tinha visto. Nem sei se a conseguia ver, se ela era mesmo para ser vista. Parecia-me uma paisagem morta. Tons verdes turbos.

Propus-lhe um jantar. Um jantar como em outros tempos. Um jantar alancharado com uns fast-foods rápidos. Uma prática típica, apelando à sua memória. Não me lembro se aceitou. Talvez o tenha feito.



Encontro-me fora do autocarro. Havia uma praia? Talvez! Era vago demais para ser registado. Nisto corri e saltei uma vedação. Do outro lado vejo-a tentar transpor a vedação. Sem sucesso. Ela cometia o mesmo erro demasiadas vezes. Tentava sempre o mesmo ponto da vedação, sempre. Disse-lhe



- Porque vais sempre por aí? Fazes sempre o mesmo.



Não ligou! Manteve-se inalterável Apareceram dois tipos perto dela na mesma situação. Fiquei com ciúmes deles. Sentia-me ameaçado. Para resolver a situação da vedação, agarrei na parte inferior, puxando com força a rede até mim, fazendo um buraco por onde passou ela e os penduras.



Repentinamente apareço a deitar-me numa cama, dentro de uma casa esquisita. Era um castelo? Podia sê-lo. Lembro-me de controlar as temperaturas, pensado se estava frio ou não. Ora tinham subido dos dois graus para os sete. Estava a ficar bom. Esperava na cama que ela viesse. Que entrasse nos mesmo lençóis e partilhássemos a temperatura. Mas não veio.



Dou por mim com a mãe dela sentada na minha cama. A mãe trocava-se de roupa. Despiu a sua roupa sem cor nem memória e lembro-me de lhe ver despontar um seio. Olhei sem admiração e só pensava na filha que não vinha. Perguntei à mãe



- Tem frio? Quer mais um cobertor?



Disse-me que não e deitou-se no meio da cama, dividindo o espaço que poderia ser meu e da sua filha. Percebi que era o fim. Que por mais que ela viesse nunca nos poderíamos tocar. Era o quebrar do sonho. Podia virar costas e dormir. Já nada de mais me acrescentaria à noite. Pensei



- Para que lado vou dormir? De frente para a mãe? Ou de costas?

Sidónio

O Sidónio é um rapaz imberbe de vinte e poucos anos. Vive atarantado com dificuldades várias naturais da idade. Ora é no emprego, ora a vida que não acerta no carril, ora a vizinha com ar doce que nunca mais lhe pediu o óleo de fritar. Das pequenas coisas vive e se aborrece o Sidónio. Tomou uma casa em Lisboa, um T0 solitário sem varandas, onde habitualmente passa noites solitárias recheadas de sonhos movimentados e suspiros salteados. Por vezes tem uma saída por outra, se é amiga ou namorada não sabemos, nem o Sidónio nos esclarece, pois possuí uma grande dificuldade no que toca a distinções de uma em relação à outra. Não nos importemos.

Para feitio de sala de estar, por entre móveis todos linhas direitas, destes modernos em contraplacado, o Sidónio faz-se acompanhar da Lucy. Um esqueleto feminino - assegurou-nos dada a largura de ancas. Confessou-nos também por detrás das lentes míopes que nunca aceitaria a companhia de um rival macho em casa. É deveras uma esqueleta. Possuí um laçarote rosado no topo da caixa craniana, ele garante que a torna mais feminina. No resto do corpo veste-se de avental às listas vermelhas e brancas e um estetoscópio pendurado no pescoço para as aflições.

Da janela com vista para o mar o Sidónio costuma queimar um cigarro por outro, apanhado brisas marítimas nas faces brancas. Em tempos quentes, deixa ficar a janela aberta para refresco das paredes. Uma vez por outra passeiam-se formigas pelos regos dos azulejos. Um rato por outro também pode passar. Torna-se uma pequena reunião de animais comuns dos quais o mais estranho: Sidónio.

Solidão

E subo e desço o Chiado. Tudo gente estranha. Uns estrangeiros que apontam objectivas potentes ao nariz do Pessoa. O Pessoa. Sem óculos. Um dia passei por lá e pus-lhe os meus. Tive cuidado, com os óculos claro. Assim pareceu-me mais real. Sinto essa necessidade por vezes: tornar o que me rodeia mais real, mais autêntico, menos fusco. Subo direito ao Trindade para ocupar tempo, vendo as montras e os anúncios vários das peças em cartaz. Contorno o Trindade e volto a descer para a praça Camões. O rio ao fundo dá-me a sensação de uma luz que se deixa acesa num escritório escuro. Num canto dois pombos amealham migalhas perdidas ou areias para a digestão. E eu migalho a vidinha para cima e para baixo, em expectativas de só.

Nos armazéns do chiado faço uma necessidade básica que a poupo ao leitor nos detalhes. Somos todos parecidos nestas coisas. Tomo um café e mastigo uma torrada seca. Pago bem. Nestas coisas não se perdoa. E volto a subir, o Pessoa pareceu-me mudar a pose, pareceu-me. Na rua vai um táxi, outro táxi. Tudo gente de pressa. E bato pé até ao miradouro. Compro um jornal para poder passar o tempo enquanto o dia escorrega suavemente. Dirijo-me às grades que torneiam todo o miradouro e deixo-me a cheirar odores que sobem, a ver laranjas de telhados, cinzentos-estátua e outros sítios por onde a solidão entre gente é muita.

Aconchego-me num banco e estendo o jornal. Podia bem ficar aqui a ver as pessoas falarem, a ver o barbas do lado a escrever – se calhar de mim e eu agora dele. Mas abro o jornal. Comprei-o para esse efeito básico. Também não dará para mais. Abrir e ler. Ler a vida dos outros. Ver o que é meu e de todos. E assim sinto-me mais integrado, mais vivo. Tudo isto porque faço um gesto comum. Sinto vontade de ser comum sem ser ridículo.

História da Minha Terra

Um pastor guardando cento e tal ovelhas

Um padre confessando velhas

Um pintor que deu à luz um ser pintado

Um candeeiro de pé sempre acordado

Um Tio de França que regressou

Um comboio que partiu e já mais voltou

A memória do moinho da minha Terra

A mesma memória que se enterra

Dois compadres a darem ao dente

O Ferreira Barbeiro cortando rente

Cabelos loiros morenos da gente

Um sino que toca a rebate

Dois pelintras no engate

O Padre velho alto de fascina

Duas velhas surdas que não percebem patavina

Uma pomba da Paz pendurada numa cruz

Um tornozelo de velha que grita “Ai Jesus”

Uma boca feia outra analfabeta

Uma é da Rosa outra da Felisberta

O café da Terra cheio de moscas

A Mena Peixeira vendendo as ostras

O Zé na cama com a Ana Mamalhuda

O irmão espreitando pelo buraco da agulha

O burro do Jacinto a pastar

E o burro do Jacinto a olhar

Um fulano que levou um tiro na caixa-da-ferramenta

Pelo menos é o que se comenta

Um sacristão que vende cautelas

O mesmo sacristão apanhado a roubar parcelas

Uma história que se conta

Outra que se mente e se aponta.