quarta-feira, 23 de março de 2011

Por que me fizeram mosca e a ti mel

O zunido acelerado do metro a enganar-nos, a dizer que vai desta àquela estação e nada, uma demora imensa. Um desconforto. A arrancar com ganas de quem devora este tempo e o outro, a serpentear desinibido, de escuro-luz para luz-escuro. Uma aldrabice pegada. Quem vai dentro é uma demora enferma. Reconheço-me numa janela, borrado pelo verde da fosforescência intrometido com o preto do não-luz do túnel. A dar-me assim umas tonalidades de armário da avó, com caixinha de sortido mole, o pote peganhento do mel a dizer-me:
                - Lambe-me
A mosca varejeira na rede do armário a espiar desejosa, eu mais mosca ainda pousado na janela do metro a envelhecer, os efeitos ordinários da idade mais expostos que nunca, o cabelo muito sujo. Bem sei que não sou assim, é o metro a enganar-me num embalo. A envelhecer-me em demoras.
Tu a sentares-te no banco em frente, a procurares a origem do mundo dentro de uma mala, a saia que deixava aparecerem duas abóbadas feitas em joelho mármore, o pescoço muito alto sempre a corrigir-se e a corrigir-me:
                - Pst, Pst… Olha a cervical
Eu a vigiar-te na janela em que sou sujo e velho com mais rugas que cabelos, a reparar-te nos modos, a implorar que encontrasses a origem do mundo no fundo da mala e pudéssemos enfim fugir os dois, fugir em costumes de criança, eu muito iludido por ti, tu nada iludida por mim mas a pensar que talvez isso se resolva.
Afinal não fugimos, disse-me a janela. Os dois muito sós na vidraça, tão próximos, só assim chegaríamos tão perto, os meus lábios a procurarem os teus, e tu a reprimires-me:
                - Tens lábios de vidro
Não são de vidro. Eu a mentir-te porque é isto que se faz quando se é imaturo. Encostei os meus lábios nos teus, exerci o meu desejo e violência. Amei-te entre duas estações numa janela de metro. E quis ficar agarrado a ti.
Fora da janela eu não existia, continuavas absorvida na mala com os fechos éclair a resmungarem fiu-fiu uns com os outros. Nem reparaste que fiz amor contigo numa janela, quase te possuí. Desejei possuir-te mas não o fiz por consciência. Ao menos isso me consola. Usar-te o corpo e devolver-to a dizer:
                - Não usei
Tão triste a realidade. Antes o verde musgo da janela. Em torno do armário, a mosca questionando-se:
- Por que me fizeram mosca e a ti mel

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